Artigos

    
Friozinho com cerveja!

          Ultimamente o estado de São Paulo tem entrado de cara no que é conhecido por inverno. Temperaturas mais baixas, vento colaborando para aumentar o frio através da distinta sensação térmica e aquela vontade de tomar uma cerveja. Ôô! Cerveja nesse frio? Pois é, cerveja nesse frio!

                Já imaginou aquela Antarctica/Brahma/Skol/Kaiser/Nova Schin/Bavária/Heineken estupidamente gelada nesse friozinho? Já imaginamos e nem demos conta de terminar o pensamento. Coisa mais horrível do mundo! Não estas cervejas, pois cada rótulo tem seu devir garantido por um complexo estrutural simbólico no qual está imerso, contando com copos, momentos, companhias e, claro, temperatura. Assim, cerveja “estupidamente gelada” combina mais com sol, verão (calor), poucas roupas e descompromissos ao longo do dia. Não defendemos o consumo de cervejas “estupidamente geladas”, mas culturalmente é assim que se consome cerveja no Brasil – essa cultura está mudando (e este é o sentido deste post), mas prefiro uma Original estupidamente gelada a uma Original a 2-3°C, a qual periga evidenciar certos off-flavors oriundos de oxidação, seja por transporte ou armazenamento inadequados.
                Fato é que estamos em um momento climático propício para testarmos novas formas de se beber cerveja. Imagine-se, você, cara leitora e caro leitor, adentrar a um supermercado, comprar uma cerveja (retirada da prateleira) e consumi-la sem refrigeração. Coisa de Europa? Pode até ser, pois temos um arraste simbólico de que europeu bebe cerveja quente, ou que lá faz tanto frio que não precisam de geladeira para a cerveja nesse momento. Certamente estamos diante de meias verdades. Primeiro, europeus não consomem cerveja quente. Na real, a temperatura de consumo sugerida por certos rótulos é considerada quente para uma mentalidade domada ao consumo do “estupidamente gelado”. Segundo, realmente o frio pode fazer o trabalho de baixar a temperatura de uma bebida a deixando no ponto propício ao consumo.
                É cada vez mais disseminado o fato de que diferentes cervejas sugerem temperaturas distintas de degustação. Isso porque a diversidade em estilos de cerveja nos contempla com um amplo leque de aromas e sabores, os quais vão sendo desprendido por camadas, ou seja, na medida em que a temperatura aumenta, novos aromas são volatilizados e outros sabores são percebidos. Mas, há uma regra? Talvez valha mais a palavra do mestre-cervejeiro do que uma regra geral para as cervejas. Porém, em linhas gerais, costuma-se perceber que cervejas mais alcoólicas e mais escuras permitem um consumo em temperaturas mais brandas que cervejas mais leves, claras e menos alcoólicas. Dessa forma, uma American Standard Lager (estilo das conhecidas Antarctica, Brahma, Skol...) sugere uma temperatura de 2°C aproximados para consumo. Uma Bohemian Pilsner, como é o caso da Pilsner Urquell, pode ser degustada a 4°C para notarmos um incrível sabor maltado lembrando pão e um floral magnífico oriundo do lúpulo da região de Saaz. Outras cervejas, fazendo parte de estilos como Dubbel, Schwarzbier, Doppelbock, Belgian Strong Dark Ale ou Weizenbock, sem contar Porters e Stouts, permitem uma degustação entre 8 e 14°C. Já vi recomendações de fabricantes chegarem até a 16°C! Atualmente, com temperaturas noturnas chegando a 7°C, por exemplo, seria uma ótima pedida dar preferência a esses estilos.
                Algumas cervejas trazem no rótulo a informação da temperatura de consumo sugerida. Vale a pena fazer o teste: aproveitar esse friozinho acompanhado de uma cerveja com sabores e aromas mais complexos, que você se permita apreciá-la em todos os seus aspectos – visual, aromático e gustativo. Sem pressa, pois não há perigo de esquentá-la! Sugiro rótulos como Paulaner Salvator (Doppelbock), Eisenbahn Dunkel (Schwarzbier – ou Dunkel, como preferirem), Baden Baden Stout, Baden Baden Red Ale (Barley Wine), Samichlauss (Eisbock), Delirium Tremens (Belgian Strong Golden Ale), Petra Stark (Starkbier – conhecidamente cervejas com uma gravidade original mais elevada, delegando um teor alcoólico entre 7 e 12% ABV), Bamberg Bambergerator (Doppelbock) ou a Bamberg CaoS (Doppelstick), além de muitas outras.

                Logo mais o frio passa, mas a oportunidade de consumir outros estilos de cerveja, buscando novos aromas e sabores, permanecerá! Sucesso nas buscas!!!
  

    Choveu, molhou, fermentou?

     Vocês sabem como “inventaram” a cerveja? Pois bem, acima de tudo, foi inventada ou descoberta? Sempre que nos deparamos com essa história da cerveja encontramos a ideia de um acaso operando para a obtenção do líquido do qual tanto gostamos.
     Antes, quero retomar algumas divisões de períodos para compreender o problema: até 4000 a.C. (marco classicamente estabelecido para a invenção da escrita) temos a Pré-História; a partir daí, começou-se, então, a História. O primeiro período é a Antiguidade, a qual se encerrou com a tomada de Roma pelos hérulos em 476 d.C.  Porém, esse período possui alguns entroncamentos historiográficos. A saber, certa carência de documentação aliada a dificuldades nas traduções. É a partir do ano 2000 a.C., mais ou menos, que as documentações tornam o ofício do historiador menos obscuro.
      Agora, imaginem a dificuldade de pesquisa para o período anterior, a Pré-história. Sim, pois a cerveja certamente surgiu neste período, em algum momento posterior à Revolução Agrícola (pontuada classicamente em 10.000 a.C. para o Oriente Próximo). Tradicionalmente, vemos a reprodução de uma conjectura que desenha o cenário com uma tina cheia com a produção de cevada esquecida ao relento, com consequente chuva. A partir de então, teve início a malteação, ou seja, a germinação dos grãos - após a maceração -, podendo até mesmo, nesse ínterim, a fermentação ocorrer. Porém, não parou por aí, pois um seguido esquecimento fez com que uma nova chuva encharcasse a parte da produção já malteada e em vias de se concluir a fermentação. Jogar fora essa tina? Alguém decidiu provar antes. “Nossa... maresia aos olhos”, pôde tê-lo pensado.
     Na verdade, essa conjectura faz voz a muitas outras do período, como a própria descoberta da agricultura, o surgimento do vidro ou até mesmo a fundição dos metais. E se um minério de cobre fosse misturado, ainda que acidentalmente, a uma lareira? Nada aconteceria. A essa conclusão chegaram a partir de múltiplas e variadas experiências. Na verdade, o procedimento mais simples a que se chegou para obter metal fundido constou do aquecimento intenso de uma malaquita finamente pulverizada em uma taça de cerâmica coberta por um vaso virado. Teriam, os pré-históricos hominídeos, chegado a isso ao acaso?
     Hoje em dia, ninguém mais explica tal situação por uma sequência de achados ao acaso ou por uma revelação mansamente registrada a partir de determinados fenômenos naturais. Cada técnica dessas supõe muito tempo de observações ativa e metódica – digo “muito tempo” contado em séculos! –, hipóteses arriscadas, ousadas e controladas, a fim de refutá-las ou confirma-las através de experiências repetidas a exaustão. Por outro lado, não atribuo aqui o ímpeto científico, exclusivamente, às nossas descobertas. É claro que acaso e intenção caminham lado a lado. Porém, creio que o acaso funcione mais como um toque de direcionamento do que algo substancial no surgimento das novas. Mas claro, isso em linhas gerais, pois a humanidade é muito diversa e suas experiências são múltiplas. Todos os elementos que concorrem à produção de nossa vida material nos escapam em alguma medida, pois nossas limitações são incomensuráveis.

     Cerveja pura por lei!

Reinheitsgebot - Fränkisches Brauereimuseum Bamberg (07/2012)
     Todos que gostam de apreciar uma bela cerveja a fazem de maneira integral: não só degustam-na com a boca, mas também com os olhos. E o olhar se desdobra à coloração, à espuma e à garrafa. Claro, o rótulo e a garrafa são importantes na venda do produto e, sobretudo, em seu consumo. As imagens não estão lá apenas para preencher espaço; dizem muito sobre a cervejaria e seu produto. As informações sobre estilo, graduação alcoólica e ingredientes fazem com que tenhamos uma noção prévia de como a cerveja se comportará na devida taça.
Em alguns rótulos podemos ler “Feito sob a Lei de Pureza Alemã”, ou algo parecido, fazendo uma menção a Reinheitsgebot. Há uma versão lúdica no imaginário popular que a coloca como expressão de uma insatisfação do duque da Baviera quanto à qualidade duvidosa das cervejas locais. Assim, Guilherme IV, ao acordar com uma grande ressaca, principalmente em vista das especiarias e demais ingredientes que eram colocados nas cervejas para aromatizá-las e dar sabor, resolveu estabelecer uma lei que restringia os ingredientes a serem usados na produção cervejeira em água, cevada e lúpulo (a levedura ainda não tinha sido “descoberta/inventada” a essa época).
Duque da Baviera Guilherme IV
Com essa lei, não era mais permitido o fabrico de cervejas de trigo, por exemplo. Mas, na verdade, o duque da Baviera Guilherme IV estava diante de um conflito maior: o suprimento de trigo no início do século XVI não estava sendo satisfatório para aquela região. Assim, cervejeiros e padeiros disputavam o grão. Até então, a cerveja de trigo era muito comum na região alemã, mas a partir de 23 de abril de 1516 este produto foi restringido. A lei proibia o uso de qualquer grão exceto cevada – pois não era um grão agradável para fazer pão. Mas nem todos da região bávara tiveram tal impedimento.
     Em 1589, foi construída a Hofbräuhaus München a mando de Guilherme V, então duque da Baviera. A partir de 1602, esta passou a ter o monopólio da produção de cerveja de trigo. Detalhe: esta cervejaria, que hoje é um dos lugares sagrados – e de peregrinação obrigatória – para os apreciadores de boas cervejas, havia sido criada para abastecer a corte do duque. Tal monopólio foi findado apenas em 1906, momento de legalização da cerveja de trigo.
     A Reinheitsgebot deu visibilidade de qualidade às cervejas bávaras e, por isso, foi incorporada por outras regiões germânicas. Atualmente, esta lei deixou de existir, mas seu legado, porém, foi atestar uma qualidade simbólica às cervejas que foram produzidas, segundo suas cervejarias, com base nessa norma. Fato é que nem todas as cervejas que têm essa impressão em seus rótulos são realmente de qualidade ou foram fabricadas apenas com água, cevada, lúpulo (e levedura). Pode ser que, por desconhecimento de causa, distração ou puro marketing, haja incompatibilidade nas garrafas ou latas: Lei de Pureza Alemã e ingredientes extras, como antioxidantes, estabilizantes ou corante caramelo. O contrário também é válido: o fato de uma cerveja levar outros ingredientes, como açúcar, frutas ou madeira – vide cervejas belgas – não quer dizer que são cervejas ruins. Trata-se de estilos e tradições diferentes. Viva a diversidade cervejeira!

Nenhum comentário:

Postar um comentário